Tornei-me leitora porque estava entediada

Rafaela Hübner
5 min readSep 27, 2020

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Uma foto minha, em preto e branco, lendo descansada

Quando criança, eu sempre incomodava a minha mãe porque estava com tédio. O que eu faço agora? E agora? A minha incomodação vinha daquela sensação de que todos estavam fazendo alguma coisa e eu não sabia o que fazer comigo mesma. Eu olhava para a minha mãe, sempre com um livro, e incomodada, eu não entendia. Ela sentava — e na minha memória, ela sempre estava de costas para a janela da sala, com uma perna dobrada — e ficava ali por o que me pareciam horas. Exceto que provavelmente não eram horas porque eu reclamava, periodicamente, com ela “O que eu faço agora?”, “Como eu existo nesse mundo?”.

Lembro de um sábado em que eu também sentei contra a janela e me acomodei com Ana Karenina. E li. Não sei o que me fez continuar lendo, mas li. Também não sei se tive algum entendimento mais profundo sobre a leitura, mas senti as dores da personagem e fiquei muito chocada com o final. Ainda pretendo reler este livro e retornar a essa memória.

Houve outros livros, muitos romances de banca, livros do Dan Brown e…Harry Potter*. Com este, eu entendi o prazer da leitura realmente. Eu lembro de ler e reler os três primeiros livros — os que estavam publicados na época — e pensar que nenhum livro no mundo poderia ser melhor. Como poderia? Aqueles livros falavam diretamente comigo, me emocionavam, me faziam torcer junto aos personagens, me apaixonar e querer que eles fossem reais para eu ser amiga deles. Segundo minhas memórias, assim permaneci por um tempo. Lendo e relendo Harry Potter.

Em algum ponto, eu incorporei esse rótulo de leitora, comecei a comprar livros e a carregá-los comigo, apesar de ainda não ter um hábito real de leitura diária. Hoje eu percebo que eu queria ser como a minha mãe naquela memória.

Acho que efetivamente me tornei leitora quando já morava sozinha e me encontrei na mesma situação de quando era criança — o que eu faço agora? E comecei a ler PDFs pirateados da internet, nessa época eu li 1984 e a Revolução dos Bichos, Jane Eyre, o Morro dos Ventos Uivantes, li os livros cobrados no vestibular como O Continente e Marília de Dirceu, OCortiço. A partir daí não parei mais e eu li de tudo, livros clássicos, livros contemporâneos, livros de auto-ajuda, livros espíritas, livros sobre crimes reais e ficcionais, livros sobre mistérios, livros de crônicas, livros que estavam na moda e livros que eu teria vergonha de afirmar que li.

Logo na sequência, criei um blog literário em que escrevia mal e porcamente sobre os livros, gostaria de dizer que eu era uma exímia crítica, mas a verdade é que eu gostava de quase tudo mesmo. Leitura é um certo acúmulo, é preciso ter um repertório para saber se aquele livro é bom ou ruim e saber que isso é (quase) totalmente subjetivo. Demorei para entender que gênero eu gostava mais e qual era a sensação que os livros me traziam que eu gostava tanto, por que era tão legal iniciar um livro e me perder nas páginas.

Em certa época, eu achava que precisava entender de crítica literária, formas narrativas, estilos de escrita, fluxo de consciência e coisas assim. Parei de escrever o que me vinha na cabeça sobre os livros e alimentei um sentimento de incapacidade, se eu não sabia sobre essas coisas, por que escrever o que eu achava dos livros? O que eu poderia acrescentar? Meu gostar ou não gostar importa para alguma coisa? E por vários anos, mantive as minhas leituras só pra mim e pra quando elas surgiam espontaneamente numa conversa.

Aos poucos foi brotando de novo essa vontade de escrever sobre as minhas leituras. Eu só queria mostrá-las, mas ainda assim, não saber a razão disso me incomodava bastante, me sentia prepotente de alguma forma, por que exibir minhas leituras e não dizer nada sobre elas? Eu precisava dizer alguma coisa.

Paralisada, me sentindo incompetente, irrelevante e também com um desejo de não ser vista. Todas sensações que brotavam de fora do mundo dos livros, mas que escorriam para minha vida de leitora também.

Algumas pessoas, de vez em quando, me perguntavam o que eu tinha achado de algum livro em específico e eu renovava a frustração de querer falar sobre e sentir que nada tinha a dizer.

E é engraçado refletir sobre isso agora, porque percebo que o que eu sentia com relação aos livros, na verdade, era um problema que eu tinha que resolver comigo mesma, de entender por que eu estava no mundo e qual era minha função nele, junto com viver na época que vivo de uma suposta neutralidade, produtividade, utilidade.

Eu ainda não tenho esse entendimento, mas depois de muita análise e muitos livros, eu entendi que o que importa no meu processo de leitura e a única coisa que eu posso compartilhar com o mundo sou eu mesma, a minha visão, a minha perspectiva, as minhas experiências. O que faz da minha experiência relevante pro mundo é o que faz dela relevante pra mim; através dos meus olhos, eu estou presente, eu existo, eu penso.

Ninguém mais teve as mesmas experiências que eu tive, da forma que eu tive e com a configuração mental com a qual eu as tive, logo, ninguém mais pode escrever sobre os livros que eu li. Ou melhor, todos podem, todos deveriam, se quiserem, a partir de si mesmos.

Ultimamente, eu tenho falado sobre as minhas leituras dessa forma mais compassiva comigo mesma. Eu seleciono um aspecto ou alguns aspectos, de forma completamente arbitrária e que muitas vezes refletem vivências que eu estou tendo no “mundo real” e falo sobre isso. As vezes me atenho mais a história, as vezes sou desviada pela discussão por trás da história. Meu critério tem sido o que a leitura diz para mim, como leitora, de forma pessoal, naquele momento determinado. Alguns livros reverberam em várias experiências e em vários tempos, alguns eu releio, outros eu planejo reler.

Acho que percebi isso lendo Carrascoza, em Amores Mínimos. Ele transforma o cotidiano em literário e poderia estar escrevendo sobre minha vida, é íntimo e é bonito. Existe toda uma existência interior antes da nossa colocação para o mundo e eu acho que vi isso nessa leitura.

Eu ainda gostaria de ser invisível, acho que o mundo pra mim seria bem mais fácil de explorar se eu não tivesse que lidar com as respostas que ele dá, mas eu estou aprendendo a lidar com isso.

Eu vou sentar na minha poltrona contra a janela no sábado de sol e entrar na história de vários personagens e depois vou tentar explicar para outras crianças como eu que é possível se tornar invisível quando estamos entre a capa e a contracapa de um livro e que ler também pode te dar uma forma de existir no mundo.

Ps: Na minha história, Harry Potter é muito maior que a sua autora, por isso, ainda nutro essas memórias com carinho, porém, acho importante deixar claro que mulheres trans são mulheres, independente da vontade de algumas pessoas intolerantes.

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