Torradas Triangulares e Tamagotchis
Já passou tanto tempo desde que eu tive tamagotchi que a moda voltou, vi em anúncios no instagram. O meu portal de novidades era a visita anual que meu pai fazia. Um ano me apresentou pringles, no outro discman e teve o ano que ele me trouxe um tamagotchi.
Estava esperando a torrada partida em dois triângulos e o leite com nescau na cozinha da vó, quando chegou. A ideia era genial, um bicho de estimação que não comia, não fazia sujeira e nem ao menos tomava espaço. Um ovinho amarelo. E no verso, um minúsculo botão que nós apertávamos com a ponta da caneta bic que resetava a vida miserável do pet virtual e ele voltava a ser um ovinho.
Desde março, estou obcecada com a palavra resetar, desejando dar um reboot na minha vida, conseguir descansar de todo o excesso pandêmico e retomar as atividades do zero, sem a pilha de entregas atrasadas. Do inglês, clean slate. Do memês, como eu vim parar aqui, meu deus, eu só tenho 6 anos.
Foram sessões inteiras de análise explorando esse meu desejo e a injustiça de não ser possível. Passei por todas as fases do luto, mas demorei mesmo foi na barganha. E se eu conseguir uma semana de férias? E se eu abandonar a faculdade? Não quero largar as partes da vida que me fazem feliz se tiver que manter a parte ruim — o trabalho. É possível pedir demissão nesse momento? Eu preciso realmente dormir e comer?
Contemplei várias possibilidades, mas no fundo, sabia que iria ter que permanecer no trabalho que detesto e que teria de cortar algumas atividades. Outras, eu teria que retomar — como comer bem e me exercitar. Igual o maldito bichinho digital, se não limpar o cocô, ele morre. Só que eu não tenho o botão de resetar. Como humana, preciso carregar comigo todas as minhas faltas.
Apesar de pesquisar muito sobre outras narrativas a respeito do tempo para além da linearidade colonial pela qual ajustamos a vida, os atropelos se impõem. Não estou bem ainda, longe disso, mas parece que aos poucos estou conseguindo desamarrar os atrasos e achar algum prazer no cotidiano. Voltei a lavar a louça e a ler livros. Estou pensando de novo em pintar a parede da sala — transformar de vermelho em verde musgo para combinar com o laranja dos gatos. Me despedi das plantas que matei neste período, estou aguando as sobreviventes.
Meus tamagotchis nunca chegaram na idade adulta, eu não tinha a paciência de manter eles felizes pelo tempo suficiente. Assassinava eles de fome, sujeira ou de solidão, virava, apertava o botão de resetar e começava tudo de novo, como se meus erros não tivessem existido. Talvez tornar-se adulto é, finalmente, perceber que nós não temos esse botão na bunda, se não cuidarmos das nossas necessidades básicas, definhamos, sem a chance de começar de novo. Nunca quis tanto voltar a comer torradas triangulares com nescau.
PS: depois de escrito este texto, chegou até mim um link que fala um pouco sobre a história do Tamagotchi, dado seu aniversário de 25 anos. Um aspecto interessante é de que foi o primeiro video game a ser marketado para o público feminino, usando-se do estereótipo de cuidado associado às meninas e mulheres.